Eu não mais me reconheço

Dani Ribeiro
4 min readOct 3, 2021

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Certa vez uma pessoa muito próxima, em uma viagem de trabalho, numa mesa de jantar de um hotel bem elegante na zona sul de São Paulo, enquanto jantávamos uma massa e tomávamos um vinho, me disse uma coisa que eu nunca mais esqueci:

Eu amo o jeito como você encara a vida, Dani. Você vê beleza em tudo, sabe andar sozinha, valoriza a caminhada, vê beleza na natureza e nas borboletas. Você tem um astral contagiante. É sempre uma delícia estar perto de você.

Sorri e agradeci. Achei delicado da parte dela enxergar esse lado meu que nem eu percebia. O ano era 2013. Eu viajava muito a trabalho. Cada fim de semana em um hotel diferente, em uma cidade diferente. No auge dos meus 25 anos, eu via um futuro promissor na minha frente e esperava que, na minha trajetória rumo à ascensão, eu enfrentaria todo e qualquer obstáculo, assim como eu já tinha feito tantas e tantas vezes na vida. Me sentia poderosa, importante e valorizada pelo meu trabalho. Morava com uma amiga muito legal e cuidadosa e tinha um relacionamento que estava meio capenga, mas a gente pelo menos se respeitava.

Chegou 2014 e com ele a morte do meu pai. O que bagunçou toda a minha cabeça e o meu coração. Com essa ruptura, vieram todos os tipos de medos, de dúvidas e de sentimentos confusos. Os piores possíveis. O maior caos. Tentei fugir de todas as formas para tentar enxergar tudo bonito de novo. Não consegui. Foi difícil e me afundei em baladas, bares, botecos, pessoas, compras e excesso de trabalho. Foi difícil organizar o caos interno, mas me dei tempo. Não sei se eu processei o luto que abriu tantas coisas dentro de mim e sentimentos que eu nem conhecia, e que também não me dei o trabalho de cuidar deles. Na época, procurar terapia era caro demais ou estranho demais para mim. Eu sempre fui muito feliz. Nunca acreditei nessa história de depressão e de ansiedade, embora algo me dissesse que eu poderia ser vítima das duas em curto prazo.

Depois de algumas relações frustradas, rupturas drásticas e inúmeras decepções, comecei um novo curso, comecei a viver novas coisas legais. E com elas, fui restaurando a minha alegria de antes. De sair da UnB, pegar um ônibus e andar por Brasília. De ir de museu em museu, de café em café e ir recuperando a beleza da vida. A graça de ver beleza no concreto e de admirar borboletas pousando nos ipês coloridos no pleno auge da seca brasiliense. Eu fui catando os caquinhos e me recompondo aos pouquinhos. Fiz cursos de escrita, escrevi demais bastante e aos poucos entendendo a minha própria complexidade.

Posso dizer que fui conseguindo tudo o que eu tinha planejado para mim. Poderia até comentar que andei cumprindo as minhas metas de ano novo ano após ano, curtindo sempre sozinha as passagens de ano tomando taças de champanhe, de roupa nova e comendo lentilha. Não sei o que a vida me reserva a cada novo ciclo. Mas, a cada ano que passa eu deixo de me reconhecer.

Ano passado mesmo, as coisas aconteceram de forma tão automática que eu nem percebi. Não vi que o ano passou. Eu trabalhei tanto no isolamento social. Deixei de encontrar pessoas e de ter prazer na vida. Escutei tanto “La Boheme” do Aznavour com fé que aquilo ia passar logo pra eu encontrar meus amigos e o amor. Torcia secretamente para poder sair na rua e ver de novo a beleza da vida. Mas, tá tudo tão diferente. “Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre sempre acaba?” É isso. 2021 chegou prometendo, mas eu não mais me reconheço.

Nada mais consegue me alegrar. Nada mais consegue fazer eu ver a beleza nas coisas, na vida, nas pessoas. A hora de dormir parece ser a mais agradável do dia, quando eu não irei dispender energias para me frustrar de novo com as relações. Só que tem dias que eu não mais consigo dormir. Então, já se passaram meses que as coisas e as pessoas não têm a menor graça. E eu sigo agindo como se estivesse tudo bem. Como se um dia de novo eu passasse a ver a beleza das borboletas que pousam nos ipês. A quem eu quero enganar? Se existem tantas feridas internas e até externas a serem fechadas dentro de mim? Se existe tantas coisas que me aterrorizam e tiram a alegria que eu tinha há tanto tempo? Eu não mais me reconheço. Eu não mais me reconheço.

As formigas estão andando em uma trilha. Elas seguem uma linha conduzidas por uma química de cheiros que as levam para o caminho que elas precisam seguir. Eis que cai uma folha no meio do caminho. A folha ofusca a visão do outro lado. A folha sufoca as formigas que sabiam para onde elas deveriam ir. A folha trava o caminho e é preciso buscar outras alternativas e caminhos para onde seguir, mas parece difícil tirar esse empecilho. Parece quase impossível remover o que aprisiona, o que cega. Essa nuvem negra, o demônio do meio dia que de tão assustador parece um sufocamento real. Pra quem me vê de fora, posso até estar feliz, mas eu me sinto oca por dentro. Triste, destruída. Eu não mais me reconheço. Eu não mais me reconheço.

O que eu fiz de mim? O que eu deixei fazerem comigo? Eu não mais me reconheço. Preciso confiar mais na vida. Espero que dê tempo.

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Dani Ribeiro

antropóloga no boteco e tchutchuca no bistrô. Fã de arte, de cultura e da trivialidade da vida | danielesouzarp@gmail.com